Um
tabuleiro de búzios. Fora de campo, a voz de Gatto Larsen esclarece que
trata-se de um problema de moradia.
Também fora de campo, a Mãe de Santo saúda todos os orixás, conversa com
as divindades e afirma que Iansã estará abrindo seus caminhos: “Não importa o
caminho. Não precisa de dinheiro. Vocês vão permanecer nesta Casa.” Eparrei Oyá ! A mesma Iansã que protege
Rubens Barbot, desde sua confirmação no terreiro das artes e outras linguagens
não verbais(a dança do orixá no candomblé aproxima a linguagem não verbal de
sua dança-vida). Este
terreiro é compartilhado e Barbot e Gatto vão construir juntos um espaço de
vida e arte num casarão que se encontra à venda no centro da cidade. Mas a
cidade para eles é outra. O centro
da cidade é espaço de afeto, poesia, memórias, danças que refletem as crônicas
da cidade subterrânea: os operários das obras transtornados pela nova versão da
cidade maravilhosa, que expulsa seus próprios moradores; traficantes, bêbados e puxadores de fumo
numa favela carioca (agora ponto turístico, com a “benção” das UPPs); o toque e
a dança dos orixás e a coreografia quase surrealista de um dos dançarinos
que mostra um novo “passinho” do
funk carioca. Corte para a “vida real”:
conversa com o povo de rua, um diálogo sobre a solidão e a violência
urbana, uma idosa solitária (Allan Ribeiro se reencontra com uma das mais
divertidas personagens de seu documentário de estréia, Senhoras (2001), em deliciosos papos na Praça da Cruz Vermelha,
fronteira emblemática entre a Lapa e a zona norte da cidade). Há um estranho sentimento de pertencimento (e distanciamento) em relação a cidade,
que não é a cidade da praia e do carnaval, mostrada à exaustão em grande parte
das produções cariocas. É um outro olhar sobre o Rio - Babilônia. Ao acompanhar
o cotidiano do casarão onde moram e sua vizinhança com suas ruas vazias, estas
duas cidades coexistem. O mesmo Rio de Janeiro, lugar de especulação mundial,
às vésperas de Olimpíadas e Copa do Mundo, existe para Gatto & Barbot e
companhia como lugar de sonho e resistência.
O
processo criativo de Barbot e Gatto (que também assinam a direção de arte) é a
invenção de Allan Ribeiro em Esse amor
que nos consome, filme raríssimo no recente cinema brasileiro, que escapa
de qualquer gênero. Sem ser
documentário nem ficção, a vida e os ensaios de Gatto, Barbot e sua
companhia de dança se misturam a diálogos verdadeiros e inventados. Allan Ribeiro acredita em seus
personagens / atores, há um terreno (ou terreiro) comum, uma confiança, identificação total
entre diretor, filme e personagens.
Entre
o desejo de Gatto e Barbot de fazer uma grande montagem de um espetáculo e a
dificuldade de um dos integrantes do grupo que necessita trabalhar e ter
salário fixo pra ajudar a família...está tudo lá, a dignidade de viver da arte,
a construção de um terreiro/casa/afeto, a certeza de um caminho, de estar
fazendo “história no terreiro”. A fé na potência da energia da arte: “é a
partir desta energia que a gente irradia, instala, impregna as paredes, a
vizinhança. É por isso que é meio difícil sair deste lugar,” isso é quase um
manifesto! O tal amor que consome. Um dos mais belos longas de estréia de um
diretor carioca. Uma metáfora poderosa.
Chico
Serra
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