quarta-feira, 24 de abril de 2013

O TERREIRO, O AMOR E A CIDADE



Um tabuleiro de búzios. Fora de campo, a voz de Gatto Larsen esclarece que trata-se de um problema de moradia.  Também fora de campo, a Mãe de Santo saúda todos os orixás, conversa com as divindades e afirma que Iansã estará abrindo seus caminhos: “Não importa o caminho. Não precisa de dinheiro. Vocês vão permanecer nesta Casa.” Eparrei Oyá ! A mesma Iansã que protege Rubens Barbot, desde sua confirmação no terreiro das artes e outras linguagens não verbais(a dança do orixá no candomblé aproxima a linguagem não verbal de sua dança-vida).   Este terreiro é compartilhado e Barbot e Gatto vão construir juntos um espaço de vida e arte num casarão que se encontra à venda no centro da cidade. Mas a cidade para eles é outra.  O centro da cidade é espaço de afeto, poesia, memórias, danças que refletem as crônicas da cidade subterrânea: os operários das obras transtornados pela nova versão da cidade maravilhosa, que expulsa seus próprios moradores;  traficantes, bêbados e puxadores de fumo numa favela carioca (agora ponto turístico, com a “benção” das UPPs); o toque e a dança dos orixás e a coreografia quase surrealista de um dos dançarinos que  mostra um novo “passinho” do funk carioca. Corte para a “vida real”:  conversa com o povo de rua, um diálogo sobre a solidão e a violência urbana, uma idosa solitária (Allan Ribeiro se reencontra com uma das mais divertidas personagens de seu documentário de estréia, Senhoras (2001), em deliciosos papos na Praça da Cruz Vermelha, fronteira emblemática entre a Lapa e a zona norte da cidade).  Há um  estranho sentimento de pertencimento (e  distanciamento) em relação a cidade, que não é a cidade da praia e do carnaval, mostrada à exaustão em grande parte das produções cariocas. É um outro olhar sobre o Rio - Babilônia. Ao acompanhar o cotidiano do casarão onde moram e sua vizinhança com suas ruas vazias, estas duas cidades coexistem. O mesmo Rio de Janeiro, lugar de especulação mundial, às vésperas de Olimpíadas e Copa do Mundo, existe para Gatto & Barbot e companhia como lugar de sonho e resistência.
O processo criativo de Barbot e Gatto (que também assinam a direção de arte) é a invenção de Allan Ribeiro em Esse amor que nos consome, filme raríssimo no recente cinema brasileiro, que escapa de qualquer gênero. Sem ser  documentário nem ficção, a vida e os ensaios de Gatto, Barbot e sua companhia de dança se misturam a diálogos verdadeiros e inventados.  Allan Ribeiro acredita em seus personagens / atores, há um terreno (ou terreiro) comum,  uma confiança, identificação total entre diretor, filme e personagens. 
Entre o desejo de Gatto e Barbot de fazer uma grande montagem de um espetáculo e a dificuldade de um dos integrantes do grupo que necessita trabalhar e ter salário fixo pra ajudar a família...está tudo lá, a dignidade de viver da arte, a construção de um terreiro/casa/afeto, a certeza de um caminho, de estar fazendo “história no terreiro”. A fé na potência da energia da arte: “é a partir desta energia que a gente irradia, instala, impregna as paredes, a vizinhança. É por isso que é meio difícil sair deste lugar,” isso é quase um manifesto! O tal amor que consome. Um dos mais belos longas de estréia de um diretor carioca. Uma metáfora poderosa.
                                                                                                Chico Serra

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